Alfabetizar com método
Magda Soares fala ao Portal do Ceale sobre seu novo livro, em que propõe novo olhar sobre a questão dos métodos de alfabetização
Geral • Sexta-feira, 08 de Julho de 2016, 16:04:00
Por Poliana Moreira
A alfabetização é um tema de constante preocupação para a sociedade brasileira. Em seu novo livro, Alfabetização: a questão dos métodos (Contexto, 384 págs.), a professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG Magda Soares apresenta um histórico da questão e reflete sobre a ênfase dada ao ensino, mais que à aprendizagem, nesse debate. “Diante dos insatisfatórios resultados da aprendizagem inicial da língua escrita pelas crianças, as preocupações, e não só do meio educacional, mas de toda a sociedade, têm sido a alfabetização, entendida como ensino, e consequente aprendizagem, do sistema alfabético de escrita”, afirma Magda em entrevista exclusiva ao Portal do Ceale.
Neste novo livro, a pesquisadora compartilha estudos, pesquisas e atenta para a necessidade do entendimento de que o processo de alfabetização vai muito além da escolha ou crítica de métodos de alfabetização, passando pela compreensão de como se aprende a língua escrita: “o que é necessário é alfabetizar com método, isto é, com clareza do processo de alfabetização e conhecimento do objeto de aprendizagem”, ressalta a pesquisadora na entrevista.
Por que seu novo livro, Alfabetização: a questão dos métodos, tem como tema apenas a alfabetização, se a senhora tem sempre defendido que alfabetização e letramento são indissociáveis?
Diante dos insatisfatórios resultados da aprendizagem inicial da língua escrita pelas crianças, fracasso sempre denunciado, e que se torna reiteradamente evidente em avaliações externas, estaduais e nacionais, dessa aprendizagem, as preocupações, e não só do meio educacional, mas de toda a sociedade, têm sido a alfabetização, entendida como ensino, e consequente aprendizagem, do sistema alfabético de escrita. Certamente a introdução da criança no mundo da escrita vai muito além desse aprender a ler e a escrever, e por isso venho defendendo há muitos anos o que tenho chamado de as muitas facetas da aprendizagem da escrita, que podem ser condensadas em dois grupos abrangentes: a alfabetização – a aprendizagem do sistema alfabético de escrita e das normas ortográficas – e o letramento – as habilidades de usar esse sistema para ler textos e produzir textos, e para inserir-se plenamente em sociedades grafocêntricas. Na impossibilidade de tratar de tudo isso em um só livro – muitas e muitas páginas seriam necessárias – optei por privilegiar, neste livro, a alfabetização que, só ela, ocupou quase 400 páginas... Meu propósito é agora produzir um segundo livro que complete este, para discutir o letramento, e sobretudo para esclarecer o que ficou apenas indicado em Alfabetização: a questão dos métodos: que alfabetização e letramento são como duas faces de uma moeda, sendo sempre necessário considerar essas duas faces como um todo, inseparáveis, como são inseparáveis as duas faces de uma moeda. Separá-las é apenas um recurso metodológico para discutir duas facetas que, na prática, se desenvolvem de forma indissociável e interdependente, mas com fundamentos cognitivos e linguísticos específicos, conduzindo, portanto, a procedimentos diferentes de ensino e processos diferentes de aprendizagem.
Quais foram as motivações que a levaram à escrita deste seu novo livro, Alfabetização: a questão dos métodos?
Soluções para o reiterado fracasso brasileiro na alfabetização das crianças têm-se concentrado, infelizmente de forma muito restrita, na questão de métodos de alfabetização, que vêm sendo, ao longo do tempo, objeto de polêmicas e controvérsias, sempre oscilando entre propostas: crítica a um método, defesa de outro, sugestão de novos métodos... como se a alfabetização fosse uma questão unicamente técnica, reduzida ao como ensinar, sem fundamentar-se clara e suficientemente em como se aprende a língua escrita. Ou seja: foco no ensino, mais que na aprendizagem, quando esta é que deve determinar aquele, que é, essencialmente, orientação da aprendizagem. A explicação para esse foco em métodos talvez seja o fato de que a necessidade de ensinar a ler e a escrever antecedeu historicamente de muito a construção de conhecimentos sobre os processos cognitivos e linguísticos envolvidos na aprendizagem inicial da língua escrita. Pode-se dizer que foi só a partir dos anos 1970 que as ciências psicológicas e linguísticas assumiram como objeto de estudo e pesquisa esses processos, trazendo uma compreensão das operações cognitivas envolvidas na aprendizagem de um objeto linguístico, a língua escrita. Minha motivação para escrever este livro foi que, procurando compreender o que chamei, já no título do livro, a questão dos métodos de alfabetização, foi buscar, por meio de uma extensa pesquisa bibliográfica e leitura intensiva de livros e artigos, na produção nacional e internacional, os conhecimentos já construídos, ou mesmo ainda em construção, sobre, de um lado, os processos psicológicos, particularmente psicogenéticos e cognitivos, que conduzem à aprendizagem da língua escrita pela criança e, por outro lado, as imposições sobre essa aprendizagem da natureza e características desse objeto linguístico que é a língua escrita. Foi fundamental estar vivenciando, ao mesmo tempo que lia, estudava e escrevia, práticas reais de alfabetização, em escolas de uma rede pública, que me possibilitaram confrontar sempre as teorias com a realidade de crianças se alfabetizando e professoras alfabetizando-as. O livro revela o desejo de compartilhar a articulação que tentei fazer de diferentes estudos e pesquisas sobre a aprendizagem da língua escrita, de propor as interpretações e conclusões a que cheguei, e apresentar o que pude concluir sobre o porquê de métodos de ensino serem considerados a questão na alfabetização da criança, e serem vistos como a solução, nunca encontrada, para essa questão, sugerindo, em consequência, no último capítulo, um novo conceito de método na alfabetização: não método de alfabetização, mas alfabetização com método.
A obra, em seu próprio título, centraliza o tema dos métodos de alfabetização. Qual é a problematização que o livro traz em relação a essa temática?
Como disse na resposta à pergunta anterior, buscando esclarecer por que métodos têm sido sempre considerados como a solução para o reiterado fracasso na alfabetização, ao mesmo tempo que se multiplicam polêmicas e controvérsias sobre qual método é o “certo” ou o “melhor”, quis compreender os processos psicológicos e linguísticos subjacentes à aprendizagem do sistema alfabético na ortografia do português brasileiro, convicta de que ensinar é, fundamentalmente, orientar a aprendizagem, sendo para isso necessário entender os processos do sujeito que aprende em interação com um objeto de que se entenda também a natureza e as características. Na verdade, quis encontrar caminhos outros que não a discussão sobre métodos de alfabetização, mas caminhos de compreensão de como a criança aprende um objeto abstrato e complexo, como é o sistema alfabético de representação de sons da fala: compreender o processo da criança e o objeto da aprendizagem, porque entendo que só a partir dessa compreensão do sujeito que aprende e do objeto que é aprendido é possível inferir formas de ação pedagógica. Apenas com essa compreensão é possível não só analisar métodos existentes, mas sobretudo verificar se métodos seriam realmente a questão e a solução. No livro, concluo, com base na compreensão que estudos e pesquisas me proporcionaram, que não é por meio de um método que se pode chegar a bons resultados na alfabetização; tanto o processo quanto o objeto de aprendizagem têm muitas faces, cada uma delas pressupondo uma ação específica. Por isso concluí que a questão não é o método de alfabetização, mas compreender, conhecer os processos cognitivos de aprendizagem pela criança de um objeto linguístico, a língua escrita, que é preciso também conhecer em suas formas abstratas de traduzir o fonológico em grafias, em sílabas com diferentes estruturas, em palavras, em frases, e assim orientar a criança adequadamente, em cada fase da aprendizagem e em cada dificuldade que enfrente. Ou seja: o que é necessário é alfabetizar com método, isto é, com clareza do processo de alfabetização e conhecimento do objeto de aprendizagem e, sendo eles como são, o que se deve fazer para orientá-lo.
A senhora ressalta a necessidade de o alfabetizador conhecer os caminhos da criança para orientar tanto seus próprios passos quanto os da criança no processo de alfabetização. Essencialmente, quais seriam esses caminhos que o alfabetizador deve ter como referencial?
De tudo o que disse ao responder as questões anteriores, pode-se inferir que, conhecendo os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança, e conhecendo a natureza e as características da língua escrita, o alfabetizador saberá como agir e como interferir na apropriação pela criança do sistema de representação alfabético e das normas ortográficas. O que em grande parte tem nos levado a baixos resultados na alfabetização é que, em geral, os alfabetizadores se esforçam para alfabetizar as crianças contando apenas com alguns conhecimentos dispersos e não estruturados sobre como a criança aprende a língua escrita e sobre o que a língua escrita impõe à criança, em geral apoiando-se em um determinado método ou em um livro didático. A ação pedagógica torna-se, assim, meio impressionista, no sentido de que o que está ocorrendo com a criança não é visto com uma clareza que permita identificar e compreender os processos de desenvolvimento e de aprendizagem que ela está vivenciando, de modo a ter condições de orientar esses processos com segurança. Para ter essa clareza, o alfabetizador precisa ter conhecimentos básicos, de um lado, da psicogênese da língua escrita e dos processos cognitivos que a aprendizagem da língua escrita demanda, e isso se refere aos processos da criança; de outro lado, já que aprender a ler e a escrever é aprender a representação da fala por signos gráficos, o alfabetizador precisa ter conhecimentos básicos da fonologia da língua, dos processos de desenvolvimento da consciência fonológica na criança, precisa conhecer as relações fonema-grafema na ortografia do português brasileiro, as normas ortográficas que regem essa ortografia, as estruturas silábicas dessa ortografia.
Como essa obra dialoga com os desafios que a formação dos alfabetizadores enfrenta na atualidade?
Diante do que foi dito em resposta à questão anterior, não há como não concluir que a formação dos alfabetizadores tem sido insuficiente. Entende-se a razão disso quando se considera, de um lado, que a concepção que tem sido prevalente na tradição pedagógica é que a alfabetização da criança é uma questão de método, portanto, de o futuro alfabetizador aprender o que fazer; de outro lado, que a língua escrita é um objeto que o futuro alfabetizador já domina, portanto, não precisa ser objeto de estudo e análise em um curso de formação de alfabetizadores. Assim, está em geral ausente, na formação dos alfabetizadores, conhecimentos da área da psicologia da aprendizagem da escrita e da área da natureza e características da língua escrita e da ortografia que se ensina na alfabetização. É curioso que, quando, em determinados momentos, conhecimentos dessas áreas aparecem na formação do alfabetizador (e também nos livros de alfabetização), são vistos de forma parcial e sempre em função da busca de um método. Um exemplo da área da psicologia é a tradução que se tem feito da psicogênese da língua escrita, apenas uma das faces do processo da criança, em método, o chamado “método construtivista”, e em livros didáticos que se declaram “construtivistas”; um exemplo da área das ciências linguísticas é a tradução de um dos componentes linguísticos da alfabetização em “métodos fônicos”, que reduzem a alfabetização, como processo de apropriação de um complexo objeto linguístico, em aprendizagem das relações fonema-grafema. É claro que muitos fatores, fatores de diversas naturezas, condicionam o sucesso ou fracasso do processo de alfabetização, e chamo a atenção para isso no último tópico do primeiro capítulo do livro Alfabetização: a questão dos métodos. No entanto, não há como negar que, como aliás ocorre no ensino de qualquer objeto de conhecimento, compreender os processos da criança na aprendizagem do objeto língua escrita, e compreender a natureza e as características desse objeto a ser aprendido, são conhecimentos essenciais que, não presentes como componentes da formação do alfabetizador, explicam em grande parte nosso reiterado fracasso brasileiro em alfabetizar.