Heranças tecnológicas do ensino remoto: o que fica com o retorno presencial

A necessidade de se adaptar ao ensino a distância obrigou professores a explorar mais a tecnologia digital no ensino, hábito que deve permanecer com a volta às aulas presenciais


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:19:00

Por Luiza Rocha

A pandemia de COVID-19 trouxe muitos desafios para a Educação brasileira. O ensino remoto emergencial foi a forma encontrada para tentar manter as aulas, mesmo que à distância. Mas, para dominar essa modalidade, muitos professores se viram obrigados a utilizar ferramentas e tecnologias com as quais tinham pouca ou nenhuma familiaridade. Mesmo que não tenha sido de forma planejada, educadores tiveram que introduzir novas plataformas tecnológicas em suas aulas, que, se antes eram indispensáveis, hoje, com a volta das aulas presenciais, podem ainda ser instrumentos muito úteis de ensino e aprendizado.

O debate sobre a utilização de tecnologias para o ensino nas escolas sempre existiu, mas o período de quarentena trouxe uma nova urgência, tornando o uso dessas ferramentas praticamente obrigatório para a continuidade das aulas. “A gente viu durante a pandemia que os professores tiveram que sair de sua zona de conforto. Porque a tecnologia, ela está no nosso dia a dia, mas ela não está na escola como uma realidade ainda, infelizmente”, afirma a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciene Cerdas. Para a pesquisadora, o ensino remoto trouxe um novo propósito ao uso de tecnologias e mídias nas aulas: “Não é o caso só de usar o vídeo para ilustrar o conteúdo, é fazer o uso realmente para dar aula, para ensinar o conteúdo, para interagir com as crianças”, completa. Luciene Cerdas (UFRJ) exemplifica dizendo que, normalmente, os vídeos estão presentes nas escolas como uma forma de complementar um conteúdo ou ocupar o tempo de aula e como um momento de descanso para as crianças, mas o material não é explorado e trabalhado, além disso.

Célia Regina de Carvalho, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), reitera que, comumente, as tecnologias já são utilizadas em sala de aula, mas sem propósito pedagógico, e que, dessa forma, não cumprem de fato um papel no ensino. “Se tiver essa intencionalidade pedagógica, essa organização, aí elas [as tecnologias] contribuem para a aprendizagem do aluno, se não, fica sendo só um passatempo”, afirma.

Os recursos tecnológicos já estão presentes no cotidiano de crianças, que têm sido inseridas nesse universo cada vez mais precocemente. Direcionar o uso dessas ferramentas com o objetivo didático-pedagógico é uma forma de deixar as aulas mais dinâmicas e criativas, além de aproximar o conteúdo da própria vivência do aluno fora da escola. “O uso desses aparelhos, a TV, o computador, o tablet, é para a criança brincar. Ela vê esses aparelhos como brinquedo, ela não vê como meio de aprendizagem, e a escola pode mudar isso”, defende a professora Célia Regina (UFMS). Para ela, não existe mais uma realidade em que as crianças não se utilizem de mídias digitais e, por isso, essas plataformas devem ser aproveitadas também na educação. “Não dá para falar ‘vamos jogar fora isso aqui, vamos ficar sem tecnologia nenhuma’. Então, [é preciso] aproveitar o potencial; o professor conhecer esse potencial e utilizar em favor da aprendizagem”, afirma a pesquisadora. Luciene Cerdas complementa: “O aluno se sente muito mais estimulado ao estudo e à aprendizagem, a partir de atividades que sejam mais dinâmicas, criativas, do que o lápis e o papel, do que só trabalhar linguagem escrita, sendo que você tem aí um universo de linguagens”. Ela reforça, ainda, que, quando falamos de tecnologia, não se pode esquecer da figura do professor, que deve estar sempre atuando como mediador do uso dessas ferramentas.

Para Isabel Frade (membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Cultura Escrita Digital/CEALE), as pesquisas e os projetos de intervenção na alfabetização e sua consolidação vêm mostrando que “a cultura digital é uma das dimensões da cultura infantil contemporânea com a qual precisamos dialogar ao pensar o ensino da leitura, da escrita e de outros sistemas semióticos. Se o ensino remoto revelou estratégias de uso de plataformas e mídias sociais, tornar as tecnologias digitais presentes, de forma intencional, não se limita a recursos de plataformas e mídias sociais, apenas como formas de propor situações lúdicas e criativas, mas a um trabalho com gêneros textuais e práticas presentes nesta cultura que trazem novos elementos para a cultura manuscrita e impressa, sempre em diálogo e não como se uma forma substituísse a outra”. Para a pesquisadora, dispor de um recurso não significa qualidade da intervenção, se este não foi relacionado a práticas sociais que a ele dão sentido, se o professor não utiliza o recurso a favor da construção de conhecimentos. É preciso que o professor faça a leitura da forma como as crianças compreendem e usam esses recursos, sempre na perspectiva crítica de como as tecnologias funcionam na sociedade.    

A formação em Pedagogia contempla em certo nível a discussão sobre o uso de mídias digitais no ensino, mas a prática ainda conta muito com a busca do próprio docente em se atualizar. Com as demandas geradas pelo período pandêmico, algumas redes também ofereceram cursos de formação para auxiliar no domínio das aulas remotas. Para a professora Luciene Cerdas (UFRJ), além do esforço individual de cada professor em se atualizar por meio de materiais disponíveis nas mais diversas fontes, cabe também às universidades o papel de potencializar essa formação, trazendo a fundamentação teórico-metodológica que possibilite referenciar a prática na sala de aula. “O que a alfabetização e o letramento têm a ver com a tecnologia, o que tem essa relação? Por que eu tenho que pensar essa tecnologia na minha prática pedagógica? Quais são os princípios na seleção desses materiais? (...) Trazer também essa discussão, sem substituir nunca o professor, a relação pedagógica presencial,” esclarece Luciene.

As mídias digitais e a prática docente

Daniele Lira, estudante de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assim como muitos professores, se viu diante de um grande desafio imposto pela necessidade do distanciamento social: produzir material audiovisual, voltado para crianças em fase de alfabetização. Daniele fazia parte do Projeto de Extensão “A Parceria Escola e Universidade na alfabetização de crianças e na formação de alfabetizadores” que, assim como todas as redes de ensino, teve que se adaptar à realidade das atividades à distância. Para que o projeto não fosse interrompido, ficou decidido que os extensionistas produziriam vídeos, que ficariam hospedados em um canal do YouTube e seriam utilizados pelas professoras das escolas parceiras em suas aulas. “Eu, particularmente, fiquei por conta da contação de histórias. Eu separava alguns livros que eu tinha aqui ou que eu já gostava, que eu já tinha contato previamente e eu contava histórias. Primeiro eu buscava inspiração em contadores que eu conhecia, (...) e eu também tentava me organizar da melhor forma possível, para depois selecionar minha história. Ensaiar também, tanto a linguagem corporal quanto a entonação da voz, todos esses elementos, esses aspectos”, conta Daniele sobre o processo de produção dos conteúdos.

A estudante, como muitos professores à época, nunca tinha trabalhado com produção e edição de vídeos e conta que muitas coisas foram feitas de forma improvisada, sendo essencial o apoio mútuo e compartilhamento de conhecimentos entre os integrantes do Projeto de Extensão. Os assuntos tratados nos materiais eram escolhidos com base em conversas com as escolas, para que se encaixassem bem nos planejamentos de aula. Daniele explica que os vídeos também ajudaram a manter um vínculo com as crianças, mesmo que à distância. “A gente leva uma proposta de um jogo que as crianças podem jogar com a família, e aí tem também um recurso visual, que entra com a edição, com uma musiquinha de fundo e a gente foi pensando nesse meio.”, exemplifica a estudante.

Luciane Cerdas (UFRJ), uma das coordenadoras desse Projeto de Extensão, explica que, além dos vídeos em si, os extensionistas incluíam propostas de atividades ao final, explorando possibilidades além da plataforma. “Eu acho que esse é o objetivo dessas tecnologias. Elas possibilitam que o conteúdo seja explorado a partir delas, por exemplo, como uma forma de mobilizar para o conhecimento ou contribuir para uma discussão sobre um determinado tema”, continua a professora. Ela afirma que produzir conteúdo digital é uma opção para o professor que deseja utilizar diferentes mídias nas aulas, mas que já existem muitos materiais de qualidade disponíveis que podem ser aproveitados. Além disso, há também plataformas que possibilitam o trabalho colaborativo e podem ser utilizadas, como o Google Docs para escrita em conjunto, ou o Kahoot para jogos didáticos.

A professora Célia Regina (UFMS) ressalta que, antes de tudo, o docente deve fazer o planejamento de aula e a curadoria dos materiais. “O professor precisa ter essa clareza, primeiro, sobre os conhecimentos que ele vai trabalhar e também precisa conhecer os materiais”, destaca a pesquisadora. Ela reforça a importância de conhecer bem as plataformas que se deseja utilizar e afirma que, desde cedo, já é possível fazer uso de aplicativos para auxiliar no aprendizado de cores e formas, por exemplo, ou até mesmo na alfabetização, com aplicativos de formar palavras, que foram muito utilizados durante a pandemia. Célia ressalta que essas plataformas nunca vão substituir o professor, mas contribuem para que a criança aprenda de forma lúdica, até mesmo sem perceber a intencionalidade por trás da brincadeira. Ela também lembra que o planejamento prévio ajuda que o professor possa solicitar o material necessário antes, já que nem sempre ele terá disponível nas escolas. Luciane Cerdas também destaca o papel das instituições em promover o acesso a tecnologias, diante das realidades tão desiguais das crianças. E completa que algumas habilidades adquiridas durante o ensino remoto podem continuar presentes nas aulas presenciais. “É muito triste se a gente voltar somente para o papel e lápis e esquecer tudo que a gente aprendeu em relação a essas tecnologias”, reflete a professora.

Para Isabel Frade, antes de as tecnologias se tornarem um ambiente e recurso pedagógico no contexto da pandemia, há iniciativas de criar propostas e critérios que ajudem o professor a selecionar atividades e jogos digitais com intencionalidade pedagógica clara, mas sem desconsiderar que a interpretação pelo mediador professor do que as crianças fazem com jogos e ambientes digitais, em processo de diálogo e interação, é o que determina o alcance e os limites desse uso.¹ Segundo ela, se as plataformas e os recursos foram utilizados em contexto de ensino remoto, as tecnologias digitais vêm para ficar, em especial, quando a escola considera as culturas infantis contemporâneas, integrando os gêneros digitais e suas diferentes linguagens às suas práticas de leitura e escrita no ensino presencial, em diálogo com as culturas manuscrita e impressa que herdamos.    

 


1 Ver publicação “Tecnologias digitais na alfabetização”, disponível em https://bit.ly/3DnYz83, e o e-book “Termos e ações didáticas sobre cultura escrita digital”, disponível em https://bit.ly/livronepced.